As brumas do Coaching

17/01/2021 | Escrito por Cleila Elvira Lyra
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As brumas do Coaching

No livro as Brumas de Avalon, Marion Bradley descreve um “campo” em forma de um imenso lago, onde escondido nas brumas está uma ilha com criaturas especiais com poderes mágicos, chamada Avalon. Mas só alguns conseguem levantar as névoas e ver o lugar. No livro, Merlin[i] fala: “Se um viajante parte sem guia para a ilha de Avalon, a menos que conheça muito bem o caminho, não conseguirá chegar...” pois somente chegará à ilha de Glastonbury. Esse lago-mar representa uma fronteira entre dois mundos que se superpõe, mas que só alguns conseguem ver os dois e, sobretudo, Avalon. Merlin[ii] também fala “o mundo é a projeção daquilo que os homens acreditam”.     

Na vida, assim como no romance, alguns conseguem ver os dois lugares, e outros só conseguem ver um deles. Mas mesmo com a sutileza e complexidade, na saga de Artur e Avalon, eles não se superpõem, ou seja, não se misturam.

No campo do Coaching por outro lado, sem poder ver claramente nas brumas, alguns promovem a mistura de alguns campos que deveriam estar bem distintos, pelo menos para os profissionais que navegam no lago e que se propõe a guiar outros para se dirigirem para Avalon ou para Glastonbury. Afinal, se os destinos (mundos) são bem diferentes, e os passageiros sabem para onde desejam ir (objetivos bem claros), os guias deveriam analisar se tem as condições necessárias para uma condução segura, que são diferentes para cada destino.

Falando em fronteiras e brumas, há algum tempo as pessoas perguntam: qual a diferença entre Psicoterapia e Coaching?

Vou tentar contribuir para navegarmos por entre as névoas, destacando alguns aspectos, mas adianto que a situação é muito complexa, pois não existe uma linha divisória clara entre elas, tal como no romance, as fronteiras são ambíguas.

Algumas razões. Escutamos dizerem por exemplo:

“Psicoterapia tem foco no Passado, em resolução de disfunções ou transtornos psicológicos, não tem um objetivo definido e não tem número limitado de sessões. Sendo que o Coaching ao contrário, tem foco no Presente e Futuro, tem um objetivo definido, um número também definido de sessões e ajuda a atingir objetivos específicos.”

Mas isto não é suficiente para diferenciar os dois campos. Como disse a diferença é mais complicada. Aliás costumo dizer que se uma pessoa analisar somente uma sessão poderá não saber distinguir: se trata de Coaching, Counseling, Mentoring ou Psicoterapia. Mas, desde que o profissional seja competente e ético, ao analisar o conjunto não terá dúvidas.

Vamos olhar melhor o que é Psicoterapia para entendermos a complexidade da situação:

a) As pessoas procuram psicoterapia, para várias demandas que não somente para curas de disfunções ou transtornos psicológicos. Há mais de 100 anos Freud inventou o método da psicanálise, depois veio Jung que se diferenciou do mestre e desenvolveu outro método que inclui a dimensão do inconsciente coletivo, chamada hoje análise (junguiana). Depois, ao longo dos tempos foram se desenvolvendo outras abordagens e para citar somente as mais conhecidas, temos a Teoria Comportamental (behaviorismo), a Humanista, a Gestalt Terapia, o Psicodrama, a Corporal/bioenergética, a Terapia Sistêmica Familiar e outras. Todas elas têm sido muito buscadas também, para simplesmente ampliar a satisfação na vida, ou para alcançar algum objetivo pessoal ou profissional e não somente para tratar transtornos emocionais.

b) Além disso, em pelo menos duas formas de Psicoterapia, a Breve e a Terapia Cognitivo Comportamental - TCC, tanto o foco como a estrutura da relação ou contrato entre profissional e “cliente” são muito parecidos com o contrato no Coaching. Por quê? Nas três abordagens há um “planejamento” que define objetivo, resultado desejado/projetado, número aproximado de sessões e o foco maior é o presente e o futuro.  

Como vimos, não é tão simples assim guiar para Avalon ou Glastonbury.

Focalizando de novo no “cliente”, sua demanda e condições psicológicas, vale a pena reforçar alguns exemplos práticos do que não é coaching:

O QUE - Se o cliente veio buscar qualquer questão relacionada a afetos, desde ansiedade, estresse, problemas emocionais relacionados a si mesmo ou família, insatisfação pessoal geral ou específica, ou um mal estar na vida, e as mais evidentes como depressão, fobias e disfunções/transtornos afetivos, tudo isto NÃO deve ser atendido em coaching, sem dúvida.

CONDIÇÃO do cliente - Se por outro lado, se tratar de algum problema de trabalho, relacionamento com colegas, superiores, insatisfação com a empresa ou semelhante, que seria claramente demanda de Coaching, mas o cliente não tiver boas condições de gerenciar a si mesmo, se não existir uma boa condição cognitiva para lidar com a situação, ou seja, se estiver emocionalmente perturbado, também Não deve ser acolhido em coaching. Pois lembrando, no Coaching o “cliente” precisa ter condições de gerenciar sua vontade. Ou seja, estar apto para analisar a realidade, refletir, buscar alternativas, experimentar e agir de modo diferente, pois vamos trabalhar nos níveis mais conscientes e racionais, com objetivo de desenvolvimento.

Em resumo, o que distingue os campos conceituais da Psicoterapia e do Coaching, não é tão nítido como gostaríamos que fosse. Daí a importância e a necessidade de maior reflexão sobre uma regulamentação para a profissão. Enquanto isso, na prática, depende acima de tudo do entendimento do profissional Coach sobre os limites das suas ações e, assim, do seu Posicionamento claro que eu entendo como ETICO. Este posicionamento deve iniciar com o estudo do código de Ética da ICF e da ABRACEM e deve incluir o do CRP, caso seja psicólogo. Mas não para por aí, disse Morgana[iii] “o lugar para onde o caminho nos levará depende da nossa vontade e dos nossos pensamentos”. Isso significa que talvez cada profissional devesse se perguntar desde o fundo da alma: “me sinto um Coach (ou seja, aceito as limitações)? Ou acalento um desejo inconfesso de ser Terapeuta (e acho que posso dar conta de demandas para as quais, na realidade, como Coach não estou autorizado)?”   

 

Nota: pessoalmente prefiro entender o campo do Coaching como Coaching Profissional e encaminhar todas as outras demandas para Psicoterapia.

 


[i] Bradley, Marion Z.. As brumas de Avalon. Ed. Imago, vol1. A Senhora do Lago, Rio de Janeiro, 1982. pág. 16

[ii] Idem. Idem Prólogo

[iii] Idem. Idem. Prólogo