Quando a facilidade atrapalha

17/09/2018 | Escrito por Cleila Elvira Lyra
Voltar ao topo

Alguém reflete: Percebo muitas vezes que pessoas com condições adversas muito fortes conseguem melhores resultados que outras com mais acesso, possibilidades etc. O que está por trás disso?

Qualquer resposta aqui ou ali oferecida não será completa, dado a grande variedade de possibilidades envolvidas, mas vou contribuir com um dos caminhos possíveis.

Posso começar dizendo que somos movidos pelo nosso desejo. Mas o que significa isto? Sendo humanos, desejo é o desejo de desejar, diferente do animal que com seu instinto se move em direção a não desejar, ou seja, à condição (biológica) que o satisfaça completamente, até um novo ciclo da necessidade que ocasionou tal movimento. No ser humano sempre há um “gap” entre um desejo e sua “satisfação”, nada nos completa, pois somos seres simbólicos além de biológicos, o que nos põe em movimento, onde cada “frustração” gera o próximo desejo, tecendo um fio interminável em torno de um Eu-em-transformação.

Por ser simbólico o desejo nasce na linguagem que é um vasto campo de significações, onde um outro inclui seu filho como um projeto, como uma possibilidade. Na trama desse projeto ou expectativa (grande parte inconsciente) do outro, uma criança vai construindo sua identidade.

 Seria quase impossível, portanto, definir o que, nessa teia subjetiva entre um Eu e um Outro, determina a força do desejo e de superação de cada um. Mas, pode-se supor que alguém que tenha sido “desafiado” para além de uma simples satisfação de necessidades (modelo biológico), seja mais capaz de superar os obstáculos no seu caminho.

Equivale a dizer que quem teve acesso fácil ou recebeu tudo “de mão beijada”, pode não ter sido forçado a entrar em contato com seu próprio desejo. Os que não enfrentaram dificuldades, não tiveram que refletir e até duvidar sobre si mesmos, razão pela qual, pairam no ar, sem vontade... por não terem tido que arrancar das suas entranhas os valores e motivos para um “projeto” verdadeiramente pessoal para sua existência.

Os que tiveram acesso fácil a todas as possibilidades, podem ter ficado surfando na superfície do seu ser e permaneceram identificados ao desejo (projeto) do outro.

Assim se viu Alice, na festa do seu noivado, antes de ser instigada a seguir o coelho branco.

Enquanto as condições eram fáceis, Alice permaneceu ingênua, identificada ao desejo do outro, mas quando ela vivenciou um conflito agudo ao se perceber objeto (solução) para sua família, algo começou a despertar dentro dela, criando condições para que fosse atraída por um coelhinho branco que lhe apontava um relógio como que dizendo: está na hora...

Levada por sua impossibilidade de dar a resposta ao noivo e pelo desejo de ganhar um tempo antes de dizer SIM, saiu correndo atrás do coelho. Essa espécie de “pânico” a levou a cair no buraco (inconsciente) onde depois de muitos sustos e confrontos, foi despejada diante da única saída: o País das Maravilhas.

Uma vez lá, usando roupas que não lhe serviam, não sabia dizer quem era, qual Alice seria? Para poder responder à pergunta sobre sua identidade, foi consultar oráculos e através dele se descortinaram possibilidades, quanto a sua identidade. Entretanto não seria sem preço, posto que lhe exigiam provas de coragem com perigos, de “morte”. Foi nesse país desconhecido e com aquelas pessoas a um só tempo estranhas e amigas que foi estimulada sua abertura para um re-conhecimento de si mesma. À medida que se enfrentava com suas fantasias, com seus medos, seu sentido de inadequação e de incompetência, foi despertando forças extraordinárias, daquelas que só podem brotar da fonte do nosso self e nunca do desejo de algum outro. Ao cabo de muitas aventuras e sofrimentos, tornou-se verdadeiramente Alice, capaz de dizer NÃO e assumir a autoria da sua história.

O mesmo vale para nossa vida real, onde somente enfrentando “de peito aberto” os desafios naturais da existência, aprendemos a nos conhecer melhor, passamos a poder escolher o que é verdadeiramente nosso, nos tornando fortes para assumir a condução da nossa vida, escrevendo de próprio punho a nossa história.