O raso dos dias atuais

17/12/2017 | Escrito por Cleila Elvira Lyra
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Recentemente fui assistir a uma atividade cujo tema era um certo tipo de liderança negativa e me surpreendi com a qualidade rasa das articulações e das conclusões da pesquisa apresentada. O palestrante denominava ciência e insistia que “isso era ciência”, posto que incluía conceitos da neurociência, como que declarando que o até então abordado nesse tema da liderança, não tinha sido ciência. E ainda, como se usar o termo neurociência ou adicionar o prefixo neuro diante de um substantivo (neuroliderança, neuro...), fosse suficiente para que esse se tornasse cientifico. Assim, dando nomes novos aos mesmos bois que pastavam nos pastos de outrora, e articulando questões psicanalíticas, sociais, biológicas, neurológicas de modo muito incompleto, superficial e até incorreto, o apresentador foi considerado brilhante por alguns (ou vários) membros da plateia.

Fiquei atordoada e sai de lá pensando que os tempos da profundidade, que nada mais é do que a velha ciência, antes respeitada, com sua preocupação com fidedignidade e com a epistemologia, estão com os dias contados em alguns âmbitos da vida social atual.

Por falar em epistemologia[i], aquele ramo da filosofia que estuda o método científico, ou discute como se constituem o conhecimento e as teorias, sinceramente, parece que poucos, entre os quais alguns filósofos e cientistas sociais, querem saber do que se trata.

Um número muito grande de pessoas, hoje, está opiniática. Quero com isso dizer que formam suas opiniões, a partir de fontes muito mais midiáticas e jornalísticas do que de suas próprias leituras sobre estudos científicos ou estudos mais aprofundados, considerados referenciais nos temas em questão. Assim elas terceirizam seus estudos, leituras e opiniões, preferindo seguir ideias processadas e simplificadas recebidas de outros.

Alguns dirão: o tempo... é o culpado! Ninguém mais pode se dar ao luxo de ler e estudar em profundidade. Mas nas horas vagas poucos leem livros. Para adquirir conhecimento, preferem assistir um vídeo com um conjunto de fragmentos de conceitos de autores que ele não leu, mas que alguém resumiu e, com alguma sorte, juntou adequadamente.

Do excelente documentário “Quanto tempo o tempo tem” de Adriana Dutra, retirei algumas ideias profundamente sensatas sobre o nosso tempo histórico. Vivemos cercado de telas e recebemos centenas de informações diariamente, que nos empurram para fragmentação. Tudo precisa ser rápido, cinco minutos é muito para uma leitura entre tantas telas e imagens que demandam nossa atenção. Entretanto, rapidez se relaciona com superficialidade, com fragmentação, dado que nossa inteligência, por ora, ainda é natural (e não artificial) o que nos leva a permanecer no raso. O perigo para o qual nos alerta o filme é que nesse fluxo intenso, fragmentado e veloz perdemos o eixo, nos perdemos, não lembramos mais quem somos.

Perder a noção de si, a identidade, parece nos conduzir a pelo menos dois possíveis caminhos: sair por aí apresentando palestras fragmentadas, sem eixo e (lamentavelmente) encantando algumas plateias, ou sofrer um mal-estar do qual já falava Freud[ii].

Quando as escolas e IES (instituições de ensino superior) cogitam adequar seus conteúdos e métodos às necessidades do mercado, me arrepio. O “mercado” cada vez mais tem se apresentado como o número de seguidores, ou de likes, ou as visualizações nas redes sociais. Achille Mbembe afirma “Nesta nova paisagem, o conhecimento será definido como conhecimento para o mercado. O próprio mercado será re-imaginado como o mecanismo principal para a validação da verdade”[iii].

Mas seria a “mão invisível do mercado” espontânea, livre, pura, virtuosa e direcionada ao que chamam Bem? Ou poderia ela nos influenciar como aos alfas, betas e gamas do admirável mundo novo[iv], ou como os habitantes de Matrix? Afinal o que é que realmente sabemos sobre quem influencia os desejos do “mercado”?

Indago: será que nossas escolas não teriam o papel de estimular a consciência, na dialética com o “mercado”? E a propósito, onde foram parar os pilares da educação para o século XXI propostos pela comissão da UNESCO[v]?  Penso que se também as escolas seguirem essa tendência do fragmentado e do raso, como vamos desenvolver pensadores, cientistas, cidadãos autônomos e livres?

 

[i]  Epistemologia é o ramo da filosofia que se ocupa do estudo da natureza do conhecimento, da justificação e da racionalidade da crença e dos sistemas de crenças, em outras palavras, de toda a Teoria do Conhecimento. Composto das palavras "episteme" e "logos". Episteme significa "conhecimento" e Logos significa "palavra", embora seja mais usado no sentido de "estudo" ou "ciência" (fonte: www.infoescola.com/filosofia/epistemologia/)

[ii] Freud,  Sigmund – O Mal-estar na Civilização - https://bibliotecasocialvirtual.files.wordpress.com/2010/06/freud-o-mal-estar-na-cultura.pdf

[iii] Achille Mbembe. http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/564255-achille-mbembe-a-era-do-humanismo-esta-terminando

[iv] Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley – PDF http://www.livrariapublica.com/2017/04/admiravel-mundo-novo-aldous-huxley.html

[v] Os quatro pilares da educação são: Aprender a Conhecer, Aprender a Fazer, Aprender a Conviver e Aprender a Ser. http://unesdoc.unesco.org/images/0010/001095/109590por.pdf