IH e IA nas organizações

17/09/2018 | Escrito por Cleila Elvira Lyra
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Os que são curiosos e abertos as mudanças e capazes de assimilar as disrupções do mundo contemporâneo, sob o impacto das descobertas e possibilidades que a tecnologia da informação e a sedutora IA oferecem, estão fascinados pelo panorama atual-futuro da gestão de pessoas nas organizações. 

Parece que se tornou muito fácil conhecer pessoas, seus estilos, preferências, tendências, motivações e até suas futuras ações. O cenário atual se desenha a partir de uma projeção-visão de futuro, onde tudo o que se faz atualmente, na maioria das organizações, parece antiquado e obsoleto. A palavra de ordem é inovação e completa-se com a da moda, disruptiva. O sucedâneo da inovação disruptiva é um universo de possibilidades onde parece que a distância entre ser capaz de imaginar e conseguir realizar, nem existe.

Trazendo para o clássico mundo das organizações. Por exemplo a atividade de Captação, Seleção e Contratação de pessoas com perfil adequado, se tornou tão fácil como comprar uma peça de vestuário em um site de ecommerce. O único problema parece que continua sendo a da qualificação dos candidatos. Mas desconsiderando isto, basta definir um perfil de uma posição e comparar a uma lista de candidatos de um cadastro, para obter um alto índice de acerto. Passo seguinte será preparar um menu customizado de remuneração e benefícios, já que o novo contratado, junto com seu perfil, vem acompanhado do seu pacote pessoal de previsões sobre o que o motiva, o que o motivará, a probabilidade de duração da sua permanência na organização, interesses paralelos e ainda outros. Aliás pode-se notar esta facilidade em outros campos, como os aplicativos das lojas disponíveis, ao alcance da maioria de nós, na internet. Por exemplo, em um app de música, depois de criarmos uma playlist, o aplicativo vai sugerindo e adicionando outras músicas, exatamente dentro do mesmo perfil que vínhamos escutando, quando as de nossa escolha terminarem. E inclusive cria uma lista especial, geralmente intitulada Nomedoapp.Me, de modo a que cada vez necessitemos menos utilizar nosso pensamento, estimular nosso desejo e sentir falta de algo... o app se antecipa e nos oferece aquilo que ainda não sabíamos que gostaríamos. Arwa Mahdawi, comentarista no The Guardian[i] escreve esta semana que “nossos momentos pessoais, com música, estão sendo convertidos em datapoints. Isto pode ser lucrativo para companhias e emocionalmente muito custosos para consumidores”. No mesmo artigo ela comenta que o tipo de música escutado/preferido pode determinar se a pessoa é melancólica e até o nível de tristeza dela - depressão - (possibilitando futura oferta de produtos e serviços especiais... ) e ainda, as tendências psicopáticas dos ouvintes, entre outros.

Além de nos sentirmos surpresos e/ou encantados, convém que esta simplicidade e esta maravilha nos levem a refletir sobre alguns efeitos, nem tão positivos desse caminho que se descortina. Refletirei sobre alguns:

·        as novas dúvidas éticas que se apresentam quanto ao incremento da invasão da privacidade e seus usos

·        a substituição de IH (Inteligência Humana) por IA (Inteligência Artificial) produzindo um tipo de desemprego que se torna estrutural

·        perda da humanidade – pelo encantamento e identificação com a IA e sua facilidade, racionalidade, objetividade.

 

As novas dúvidas éticas - um tema recorrente, refere-se ao direito a nossa privacidade. Mas cada dia ficamos mais assombrados sobre como os sistemas abstratos de informação nos conhecem, e somente a partir das nossas navegações e participações em espaços virtuais, sejam eles redes sociais, inocentes aplicativos de música ou outros.

São estes os mesmos sistemas que permitem conhecer com bastante detalhes, um candidato a uma posição em uma organização, muito antes dele se apresentar pessoalmente. Agregue-se, em um nível que talvez nem ele seja capaz de descrever a seu próprio respeito. E aqui vale o comentário antes utilizado seletivamente “sua fama o antecede”, agora podendo se aplicar até mesmo para as mais anônimas das criaturas. Isto porque basta possuir um celular conectado a internet e deixamos de ser anônimos.

Não estou tão segura quanto a consciência que as pessoas têm em relação a sua “participação” virtual, ou seja, quanto à sua exposição em uma vitrine planetária. Por outro lado, com o que já sabemos hoje sobre isto, não deveria ser surpresa. Deveríamos saber que nossa ação é pública, que pode ser acessada por qualquer um, em qualquer local do planeta. Questionar o uso que terceiros fazem desses nossos passeios virtuais? Bem, este constitui-se em um dos dilemas éticos das sociedades contemporâneas.

A segunda reflexão refere-se à substituição de IH (Inteligência Humana) por IA (Inteligência Artificial), produzindo um tipo de desemprego que se torna estrutural. Tomemos, por exemplo, os psicólogos e seus tão confidenciais e preciosos instrumentos de avaliação, os testes. Para conhecer alguém atualmente, além das possibilidades virtuais acima mencionadas, de livre acesso, algo do passado está sendo resgatado. Os testes psicométricos voltaram a moda. Mas agora repaginados em meio virtual, certamente não mais exclusivamente por psicólogos, mas principalmente por engenheiros de softwares, estatísticos, analisas de TI. Parece que esse caminho empurra os antigos autores e comerciantes de testes psicométricos, em papel, tão sigilosamente e cuidadosamente preservados pelos psicólogos e seus conselhos de classe até aqui, para a berlinda. Afinal as IAs podem desenvolver rapidamente, testes com caracteristicas e linguagens mais contemporâneas e ainda mais customizados. Tornam-se assim mais compatíveis com cada competência ou habilidade especial, incluindo as novas que estão sendo e serão cada vez mais necessárias, como as que habitam nas interfaces entre algumas disciplinas/campos até aqui relativamente desconhecidos.

Menciono só um campo – testes psicológicos - tidos até aqui como reservatórios de expertise de alguns criadores de instrumentos, que no passado levaram anos para desenvolver, experimentar, validar e receber autorização para sua comercialização. São também eles os dinossauros da vez? Certamente não há limites para imaginar outros campos ou redutos onde a entrada da IA poderá afetar radicalmente. Sem mencionar as já tão familiares e em pleno incremento, relativas a robótica nas unidades industriais de qualquer segmento, promovendo a substituição em massa dos “incômodos” humanos.  

Não pretendo aqui clamar pela volta ao passado e tampouco considero todos os efeitos das IA nefastos, mas como aprecio observar os cenários sociais de modo bastante amplo, noto um deslumbramento geral associado a uma baixa crítica, em muitos campos, sobretudo nas organizações. A contínua busca por redução de custos e por não depender de pessoas (com suas subjetividades, doenças, erros, faltas, desmotivação, desligamentos ...), encontra nas soluções da tecnologia, uma fonte fértil, mas promove uma assustadora visão de futuro.

Entretanto, desviando seu olhar, cada uma das organizações, focaliza no seu mundinho, considerando que o âmbito social é de responsabilidade dos políticos. De fato, em princípio assim deveria ser, mas as grandes corporações planetárias estão mais fortes que os políticos. Aliás, estão cada vez mais conectadas com a política. Vale estimar que no limite, a partir dessa nova condição de trabalho, as diferenças sociais se agravarão, obrigando aos ricos se refugiarem nos seus feudos com sua corte e servos, cercados de muros e jacarés, posto que os outros, estarão errando pelos quatro cantos a procura de trabalho e uma forma de sobreviver.

Outro modo e, talvez o mais perigoso, de perdermos a humanidade, tem sido o encantamento e a identificação com a IA projetando nela a facilidade, a racionalidade e a objetividade; em resumo, o cérebro engolindo as quatro dimensões psíquicas (Jung)[ii].

O primeiro sinal dessa identificação tem sido a crescente ampliação das neuro + alguma coisa, como a neuropsicologia, neuroliderança[iii] ...

Observando o cenário, pode-se entender as razões pelas quais a neurociência veio com força total aportar no campo da psicologia e da administração. Ora, cérebro-sinapses-cognição são totalmente compatíveis à inteligência artificial (IA). Os modos de operação são semelhantes, aliás a segunda imita a primeira, porém não convém esquecer que com vantagens, para muitas situações.

Dessa maneira, todo o cenário favorece a criação de teorias que combinando entre si, constituem-se em um sistema que se locupleta, podendo constituir-se em ideologia. Ou seja, um conjunto de ideias, crenças, visões de mundo compartilhadas entre indivíduos e grupos que orientam suas ações sociais e políticas, podendo chegar a produzir um “apagamento” da consciência crítica humana. Tudo se explica dentro do mesmo sistema, fechado.

Ao que parece, poucos estão atentos para onde nos leva essa trilha. A mim parece que a muitos desencontros. Entre eles, o desemprego das categorias mais operacionais, que claramente não serão absorvidas para cima, por razões óbvias que dispensam comentários, gerando um desemprego que passa a ser estrutural e não mais ocasional, como se fosse um evento do cenário social, ou do mal desempenho da economia.

Outra, que deveria ser clara e transparente aos psicólogos (psiquê = alma) e aos administradores que já aprenderam e defenderam tanto a IE Inteligência Emocional, reside no fato de que nenhuma das abordagens neuro consegue alcançar algo que continua a agir e dinamizar as pessoas e suas individualidades. Me impressiona um pouco, talvez pela minha concepção tão psicanalítica, que ignorem a existência do inconsciente, seja individual ou coletivo. Nenhuma máquina ou modelo de algoritmos por melhor database, jamais será capaz de compreender um humano, genuinamente. É atribuído a Jung o comentário: conheça toda as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana

Referências

[i] https://www.theguardian.com/commentisfree/2018/sep/16/spotify-can-tell-if-youre-sad-heres-why-that-should-scare-you

[ii] Segundo Carl Gustav Jung, são quatro as dimensões psíquicas que compõe um ser humano: Pensamento + Sentimento + Intuição + Sensação, respectivamente equivalentes a mente/cérebro, coração/emoções, alma/espirito e corpo/sentidos

[iii] Tema já abordado em artigos anteriores