As Soft skills e o “espírito” empreendedor

24/09/2020 | Escrito por Cleila Elvira Lyra
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Tenho estado em contato com vários jovens que não querem seguir as carreiras tradicionais dos seus familiares. Alguns deles, inclusive, se desligaram de ótimas organizações para empreenderem seus próprios negócios.

Vou escrever percepções sobre a experiência, relacionando Competências essenciais e Soft Skills em duas etapas, para não cansar os leitores, sobretudo os mais jovens. Inicio com uma atualização de conceitos sobre Competências, para os não familiarizados.

No mundo das organizações costumamos entender competências como a integração de três elementos conhecidos como CHA: C de Conhecimentos, H de Habilidades e A de Atitudes. Brincamos que se trata do CHA das competências. Então vamos lá...

Conhecimento – em resumo, se refere ao referencial teórico e técnico, as informações, as normas, os procedimentos, enfim o que depende principalmente do Pensamento, da Cognição. Se tomarmos o campo da Culinária por exemplo, conhecimento seria saber sobre tipos de temperos, receitas, tempos de cozimento, temperatura do forno etc. Os Conhecimentos constituem-se cerne do que é ensinado nas escolas, e podem ser transmitidas diretamente, ou lidas. Se referem mais aos nossos arquivos do cérebro. Seria o Saber Conhecer do relatório da Unesco sobre os Pilares da Educação para o sec. XXI.

Habilidades – Seria o Saber Fazer dos pilares da educação citados. As Habilidades são menos ensinadas, diretamente, nas escolas. Podem também ser aprendidas, podemos treinar e desenvolvê-las, e isto se torna mais fácil quando temos um dom natural, ou uma inclinação para aquilo. Por exemplo, alguns conseguem usar o conhecimento e treinar para fazer uma boa feijoada. Mas aqui já entra mais fortemente a aptidão, pois a partir de uma mesma receita, alguém com dom para cozinha vai fazer uma delícia, quando os outros fazem algo sem graça. Neste campo é mais difícil que outros nos ensinem diretamente. O desenvolvimento de habilidades em nível alto, requer muito mais a dedicação a partir das tendências pessoais.

Atitudes – Seria o Saber Conviver e Saber Ser dos pilares da educação da Unesco Essas são ainda menos ensinadas diretamente, nas escolas. Se trata de uma disposição para... ou um posicionamento diante da vida e seus acontecimentos. Por exemplo: continuando na cozinha, seria o grau de determinação e de resiliência que um chef de cozinha e dono de restaurante tem, quando o seu restaurante está com extrema dificuldade, devido ao isolamento social, na pandemia de COVID-19. Como cada um lida com essas situações adversas ou outras positivas na vida, refere-se a Atitude.

Avançando, podemos dizer que desse CHA das competências, os Conhecimentos fazem parte do que se chama atualmente hard skills. Por outro lado, o que chamamos de soft skills estão mais relacionadas com as Habilidades e Atitudes.

Fechando o parêntesis nesta revisão de conceitos, vamos falar como acontece na prática em dois “mundos”: as organizações e os empreendedores.

Nas organizações, nos processos de seleção de pessoas, esses dois grupos são avaliados na hora da contratação, sendo que as hard skills são uma pré-condição. Ou seja, se buscam um engenheiro mecânico o curso universitário que valida tais conhecimentos teóricos, métodos e ferramentas, será excludente e facilmente identificado. Este conjunto é ensinado diretamente nas universidades e está confirmado no currículo. Se for preciso comprovar ainda mais, é simples e fácil fazer uma prova de Conhecimentos teórica e técnica.   

Por outro lado, as soft skills embora altamente desejáveis, são mais difíceis de serem identificadas em curto prazo. Os currículos também falam das experiências e posições já ocupadas, de certo modo demonstrando algumas habilidades, mas por não dependerem somente do cérebro e da cognição, demandam certo tempo para serem comprovadas e desenvolvidas. Assim, tornaram-se uma grande preocupação das organizações, em momentos de contratação.

Continuando a falar das soft skills e do âmbito das organizações, se olharmos na internet ou conversarmos com alguns psicólogos organizacionais vamos encontrar uma grande lista das soft skills consideradas mais importantes e procuradas atualmente.  Para ser viável a identificação e escolha, os selecionadores definem primeiro os requisitos de cada cargo para depois classificarem as mais importantes para cada caso. Afinal já descobrimos que não existe um ser completo e perfeito. Assim, seria impraticável falar aqui das soft skills mais importantes, sempre.

Decidi então focalizar nos empreendedores, os jovens (mas não somente eles) que estão preferindo esse caminho, como carreira e projeto de vida.

Nas startups com quem tenho trabalhado, distingo claramente algumas soft skills mais importantes. Reuni em seis grupos de competências (CHA), que percebi na prática, serem encadeadas e interdependentes.

1 – Grupo I - Disposição para aprender – alguns conhecimentos, habilidades e atitudes. É o ponto de partida. Ser capaz de aprender com os fracassos, com os colegas, com as mudanças de cenário, é imprescindível. Fácil entender os motivos. Geralmente são poucos membros e muitas especialidades demandadas, ou seja, todos precisam sair das suas zonas de competência e de conforto e se aventurarem em campos novos para eles. Por exemplo, engenheiros precisando entender de contabilidade, de desenvolvimento de softwares, de finanças. Sem a abertura (A) para aprender a conhecer (C) e a fazer (H) uma atividade nova de uma área diferente, uma startup não se desenvolve, não passa da etapa do sonho.

2 – Grupo II - Propósito/ Visão compartilhada/ Colaboração – é a capacidade de criar ou aderir a uma ideia que se transforma em propósito. Um propósito é mais do que um objetivo, pois se vincula a algo importante para si, mas que também ajuda a solucionar algo importante para o outro, a sociedade. Tenho percebido que geralmente o propósito nasce de uma ideia de um indivíduo, que começa a dialogar com outro e talvez com mais alguns e assim se forma um grupo, um projeto de startup. Mas as dificuldades se iniciam quando as diferentes visões precisam ser integradas. Assim, a capacidade de transformar o propósito de um dos membros do grupo em propósito comum (A) e visão compartilhada, se torna um diferencial significativo, tanto para o grupo como para a sociedade. Este “espírito de grupo” significa colaboração ao “pé da letra” e torna o projeto mais sustentável, pelo engajamento de todos.

 3 - Grupo III - Trabalho em equipe/ Comunicação/ Tomar decisões em conjunto – o que é trabalhar em equipe senão a disposição para colaboração entre os membros de um grupo? Mas para que isto aconteça, a comunicação entre os membros deve ser clara, objetiva, transparente e sincera, onde cada um aprende a escutar, mas também a defender seus pontos de vista. Essa forma de comunicação torna-se o meio de promover a saúde dos membros e do grupo. Cada membro – sócio, poder falar o que pensa e sente com objetividade e ser respeitado no seu entendimento, permite que divergências não se tornem conflitos e que o projeto se fortaleça e avance. A disposição para comunicação sincera (A) é essencial, está conectada com a atitude de abertura para aprender e favorece a rica possibilidade de analisar problemas e situações e a tomar decisões em conjunto (A, H), que se torna essencial em um empreendimento embrião. 

4 - Grupo IV - Racionalidade /Capacidade de dar e receber feedback/ Confiança  – reuni aqui este grupo de competências pois percebi que utilizar a razão para estabelecer metas e sistemas de avaliação de resultados em cada etapa e para cada participante, é indispensável para poder dar os passos necessários para transformar um sonho em realidade. Uma startup geralmente se inicia por vínculos de afinidade, de amizade da universidade ou de outro grupo de referência. Parece assim que a Confiança já está dada de partida. Mas observo que não é assim, ela pode se desmantelar facilmente diante das adversidades da jornada e o vínculo que motivou a adesão pode se tornar uma pedra que atrapalha a caminhada. Mas como fazer para separar amizade de sociedade? Começa pelo entendimento de que nessa etapa, é preciso usar a razão (H). Significa saber separar emoções e amizades de objetivos e metas do projeto (A, H). Isto se pratica como competência de saber dar e receber feedback, “cobrar” ações e avaliar resultados de colegas e aceitar as observações deles sobre suas próprias ações e “entregas” (A). Desenvolver esse costume de monitorar os planos, as responsabilidades, os cronogramas e a qualidade das entregas desde o início, são valores da cultura da startup que favorecem manter e fortificar a confiança e os bons resultados.

5 - Grupo V - Flexibilidade / Resiliência /Determinação – são incontáveis os percalços e situações novas para um grupo de empreendedores, que os obrigam a desenvolverem uma força extraordinária, que chamamos determinação (A). Alguns exemplos de dificuldades que observei são: precisar mudar o foco  do projeto pois não há uma demanda real na sociedade; ou de haver investido em um fornecedor que não lhe entregou o que precisava e agora está sem recursos para nova contratação; ou um dos membros que detém o conhecimento “core business” esta frágil no  grupo; ou outras tantas. Qualquer dessas condições demanda uma capacidade de superação constante, que chamamos Resiliência (A). Sem estas competências só com sorte conseguirão transformar o embrião em uma organização.  

6 - Por último, mas não menos importante o Grupo VI - Coragem de arriscar /Visão ampla da vida – compreender que a vida é muito ampla e sempre há como mudar, refazer, caso um sonho ou projeto não se concretize como foi idealizado, é fundamental. Essa compreensão sobre a vida (A) favorece a coragem de arriscar (A) em momentos em que não se pode ter toda garantia de qual é a melhor solução. Entender que a jornada, na vida, é o que vale a pena ser vivida em cada momento, favorece a aceitação e o auto perdão, caso alguém tenha tomado uma decisão equivocada e até perdido dinheiro, as vezes tudo o que havia conseguido guardar até então. Compreender que nada é definitivo e que tudo pode ser reavaliado e redirecionado, permite a coragem de arriscar novamente, agora utilizando as aprendizagens da caminhada. (C H A)

Em resumo, cada tempo histórico demanda competências diferentes e as mais destacadas e buscadas no mundo atual, não são ensinadas diretamente nas universidades e são chamadas soft skills. Estas que citei, servem como exemplo.

Para concluir devo dizer que as soft skills já citadas são importantes também para quem atua dentro das organizações como empregado, pois estas apreciam muito o que chamam de intraempreendedorismo. Ou seja, que um colaborador lide com suas responsabilidades e com a empresa que o contrata, como se fosse sua.